quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Primeiro Texto do PIESF

Este é o primeiro texto do piesf, sedido pelo professor Walter Marcelo
Beijos,
Lorena Coelho
             Rev. bras. enferm. vol.62 no.6 Brasília Nov./Dec. 2009
Relações de trabalho em equipes interdisciplinares: contribuições para a constituição de novas formas de organização do trabalho em saúde
Work relationships among interdisciplinary teams: contributions for new methods of organization in health work
Relaciones de trabajo entre equipos interdisciplinarias: contribuciones para nuevos métodos de organización del trabajo en salud  
Eliane MatosI; Denise Elvira Pires de PiresII; Gastão Wagner de Sousa CamposIII
IUniversidade Federal de Santa Catarina. Hospital Universitário. Florianópolis, SC
IIUniversidade Federal de Santa Catarina. Departamento de Enfermagem. Florianópolis, SC
IIIUniversidade Estadual de Campinas. Faculdade de Ciências Médicas. Departamento de Medicina Preventiva. Campinas, SP


RESUMO
Estudo de natureza qualitativa realizado com equipes interdisciplinares de saúde em dois hospitais públicos da Região Sul do Brasil. Uma equipe presta cuidados paliativos a doentes com câncer e outra cuidados a idosos. O estudo contribui para pensar as relações de trabalho ao analisar a contribuição destas experiências para a constituição de novas formas de organização do trabalho em saúde. Os resultados revelam que a perspectiva interdisciplinar possibilita melhores relações de trabalho entre profissionais e entre eles e doentes/família, aproxima os profissionais das necessidades do doente e contribui para uma assistência de melhor qualidade. Conclui que a prática interdisciplinar aproxima-se de novas formas de organização do trabalho, favorecendo o vínculo, o acolhimento o acesso e contribuindo para a efetivação do Sistema Único de Saúde.
Descritores: Trabalho; Comunicação interdisciplinar; Satisfação no trabalho.


ABSTRACT
This is a qualitative study developed with the interdisciplinary health care teams of two public hospitals in Brazil. One team provides palliative care to cancer patients and the other provides care to the elderly. The study contributes to thinking about work relationships in the health care sector upon analyzing the contribution of these experiences for the constitution of new forms of health care work organization. The results reveal that the interdisciplinary perspective of performance in health care makes better work relationships possible among professionals and between professionals and patients/family, as well as approximates the professionals to the needs of the patient, beyond contributing to better quality care. We conclude that interdisciplinary practice approximates new forms of work organization and, upon favoring these links, reception, and access, contributes to the greater efficiency of the Brazilian National Health Care System.
Descriptors: Labor; Interdisciplanary communication; Job satisfaction.


RESUMEN
Estudio de naturaleza cualitativa desarrollado con equipos interdisciplinarios de salud en dos hospitales públicos en el sur de Brasil. Un equipo que realiza cuidados paliativos a enfermos con cáncer, y otro que atiende ancianos. Al analizar la contribución de esas experiencias para la constitución de nuevas formas de organización del trabajo en salud, el estudio contribuye para pensar las relaciones de trabajo. Los resultados revelan que la perspectiva interdisciplinaria posibilita mejores relaciones de trabajo entre los profesionales, y entre esos profesionales y los enfermos/familia, al aproximarlos de las necesidades del enfermo y contribuir para la realización de un trabajo de asistencia de mejor calidad. Se puede concluir que la práctica interdisciplinaria se aproxima de nuevas formas de organización del trabajo, y al propiciar el vínculo, la protección y el acceso, contribuye para la efectividad del Sistema Único de Salud.
Descriptores: Trabajo; Comunicación interdisciplinaria; Satisfacción en el trabajo.


INTRODUÇÃO
A extrema fragmentação do conhecimento, resultado do avanço e isolamento das disciplinas, bem como de interesses corporativos, tem demonstrado a insuficiência desta racionalidade e colocado a interdisciplinaridade no centro das discussões acerca do desenvolvimento da ciência e das práticas sanitárias.
No campo da saúde esta discussão tem aberto, nas últimas décadas, um amplo espaço de debates, tanto no que diz respeito à produção acadêmica quanto à prestação dos serviços de saúde. Embora se fale incessantemente da interdisciplinaridade, muitas são as dificuldades de seu exercício na prática dos serviços de saúde, o que nos fez investigar o modo como acontece a interdisciplinaridade em duas equipes de saúde, uma delas em um serviço de atenção ao idoso, e outra ao doente em cuidados paliativos.
Na investigação realizada mereceu importante destaque a natureza das relações de trabalho nestas equipes. O trabalho interdisciplinar pressupõe novas formas de relacionamento, tanto no que diz respeito à hierarquia institucional, à gestão, à divisão e à organização do trabalho, quanto no que diz respeito às relações que os/as trabalhadores/as estabelecem entre si e com os usuários do serviço. Essas mudanças se distanciam da fragmentação e hierarquização taylorista-fordista e se aproximam das chamadas "novas formas de organização do trabalho"(NFOT).
A influência do modelo fragmentado de organização do trabalho, em que cada profissional realiza parcelas do trabalho sem uma integração com as demais áreas envolvidas, tem sido apontada como uma das razões que dificultam a realização de um trabalho em saúde mais integrador e de melhor qualidade, tanto na perspectiva daqueles que o realizam como para aqueles que dele usufruem. Considerando-se a realidade e as especificidades do trabalho em saúde, que é desenvolvido por seres humanos para outros seres humanos, cuja complexidade ultrapassa os saberes de uma única profissão, é que se tem defendido que o trabalho em saúde deve envolver práticas que se identificam com o que tem sido classificado como multi, pluri, inter e transdisciplinaridade, por uma necessidade própria da evolução do conhecimento e da complexidade que vão assumindo os problemas de saúde na realidade atual(1,2).
A perspectiva interdisciplinar pode possibilitar o exercício de um trabalho mais integrador e articulado, tanto no que diz respeito à compreensão dos/as trabalhadores/as sobre o seu próprio trabalho, como no que diz respeito à qualidade do resultado do trabalho(2-5).
Na análise das relações de trabalho nas equipes interdisciplinares, considera-se o modo como se desenvolve o processo de trabalho e a compreensão acerca dos seus componentes (finalidade, objeto, instrumentos, força de trabalho) com vistas à obtenção de um resultado.
A finalidade do processo de trabalho em saúde é, por meio de alguma ação terapêutica, co-produzir saúde e o que define o trabalho em saúde é a necessidade colocada pelo sujeito que busca estes serviços. No entanto, a necessidade não se constitui unilateralmente. No caso do trabalho em saúde estão envolvidas as necessidades dos/as trabalhadores/as, dos usuários do serviço "(as quais devem ter precedência sobre as demais) e as da instituição"(4).
No exercício do trabalho, os/as profissionais de saúde compartilham um mesmo objeto o ser humano. Seu processo de vida envolve diversas dimensões complementares (biológica, psicológica, social, cultural, ética e política). Em seu percurso de vida, por vezes, o ser humano, necessita da intervenção dos/as profissionais e serviços de saúde. Neste momento, ao relacionar-se com os/as profissionais de saúde o usuário "expõe suas fragilidades e se expõe aos profissionais, que para facilitar este processo precisam aliar à competência técnica a perspectiva humanística"(4).
Para realizar o trabalho, as ações terapêuticas, preventivas ou de promoção da saúde, os/as profissionais de saúde usam múltiplos instrumentos de trabalho. Estes instrumentos incluem "também as condutas que representam o nível técnico do conhecimento que é o saber de saúde"(2).
O ato institucional em saúde envolve um trabalho do tipo profissional, realizado por trabalhadores que dominam os conhecimentos e técnicas especiais para assistir o ser humano ou grupos com problemas de saúde ou risco de adoecer. A demanda por cuidados de saúde, envolve múltiplos saberes e fazeres que dizem respeito aos conhecimentos e práticas de diversos/as profissionais: médicos/as de diversas especialidades, enfermeiros/as, técnicos e auxiliares de enfermagem, nutricionistas, farmacêuticos/as, bioquímicos/as, assistentes sociais, psicólogos/as e outros, dependendo da complexidade dos serviços prestados(2).
Nesta perspectiva, a prática interdisciplinar coloca-se como potencializadora da integração que permitiria uma compreensão ampliada do objeto de trabalho em saúde, pela interação entre os profissionais e a articulação entre os diversos saberes e fazeres presentes no trabalho em saúde, possibilitando deste modo outras formas de relação entre os sujeitos envolvidos no processo. A perspectiva interdisciplinar, no trabalho em saúde, identifica-se com alguns aspectos que vem sendo tratados como Novas Formas de Organização do Trabalho (NFOT), contribuindo para se pensar as características de um novo modo/paradigma de organização do trabalho em saúde(4,6,7).
METODOLOGIA
Este é um estudo de natureza qualitativa e o suporte para a investigação, para a coleta e análise dos dados vêm do materialismo histórico e dialético e das contribuições oriundas dos estudos acerca da interdisciplinaridade e da complexidade, especialmente os trabalhos de Edgar Morin.
A investigação foi desenvolvida em duas instituições hospitalares públicas da Região Sul do Brasil que realizam experiências interdisciplinares na atenção à saúde, e que se destacam na realidade estadual e nacional como referências em suas áreas. Uma delas caracteriza-se como um centro de estudos e pesquisas oncológicas, de média complexidade, e a outra, como um hospital escola, também, de média complexidade.
A definição das equipes interdisciplinares e a escolha dos sujeitos se deram com base na história e reconhecimento destas experiências no cenário do trabalho em saúde, na composição multiprofissional das equipes e no aceite da instituição e dos/as profissionais para participação na pesquisa. Participaram do estudo 19 representantes das diferentes categorias profissionais que integram as equipes estudadas (assistente social, farmacêutico, fisioterapeuta, terapeuta ocupacional, nutricionista, psicólogo, técnicos de enfermagem, enfermeiros, médicos) e quatro usuários e dois familiares assistidos por estes/as profissionais.
Os dados foram coletados articulando duas técnicas: as entrevistas semi-estruturadas com os/as profissionais/as e usuários/familiares assistidos/as por estes/as profissionais e a observação sistemática das atividades realizadas pelas equipes.
O roteiro de entrevistas elaborado para utilização com os usuários foi adaptado quando as mesmas foram realizadas com familiares, bem como adequadas à realidade e condição de saúde de cada entrevistado/a no momento de realização. As entrevistas foram gravadas com consentimento do/a entrevistado/a. No caso dos usuários e familiares, os dados foram confirmados logo após as entrevistas, considerando-se as dificuldades para retorná-las aos/as mesmos/as. As entrevistas realizadas com os/as profissionais foram transcritas e posteriormente apresentadas aos mesmos/as para validação dos dados.
A observação sistemática permeou todo o processo de investigação e foi realizada em: reuniões formais e informais das equipes, reuniões com usuário e com familiares, sala de espera e atividades de educação em saúde, reuniões com familiares de portadores/as de Alzheimer, atividades de educação permanente, visita domiciliar, atendimento ambulatorial, bem como durante a realização de procedimentos terapêuticos com usuários internados.
A análise dos dados foi feita a partir de categorias previamente definidas sendo que os dados obtidos nas entrevistas com os/as profissionais e com os usuários e familiares e na observação sistemática foram, em um primeiro momento, analisados separadamente. O material foi organizado de modo a contemplar a totalidade de comunicações dos atores sociais, estabelecendo-se, a partir daí, conjuntos homogêneos de comunicações ou unidades temáticas. Foram construídos dois corpos de comunicações as dos/as profissionais de saúde e a dos usuários/familiares do serviço, uma vez que estes grupos percebem e vivenciam o fenômeno a partir de pontos de vistas muitas vezes diferentes. Realizou-se a leitura transversal destas comunicações (tanto da entrevistas como das observações), agrupando-as por temas e o material proveniente do estudo documental auxiliou na compreensão de determinadas situações presentes na observação e nas entrevistas. As categorias centrais foram reagrupadas chegando-se a definição das categorias finais de análise.
O estudo seguiu as diretrizes e normas que regulamentam a pesquisa envolvendo seres humanos contidos na resolução de Helsinque (1989) que fundamentam a Resolução no. 196/96 do Conselho Nacional de Saúde/Ministério da Saúde. Os sujeitos foram identificados pela letra inicial da profissão, ou combinação de letras, quando necessário, seguidas de uma numeração quando da existência de mais de um/a profissional de uma mesma categoria funcional e da sigla da equipe em que atua (Equipe de Cuidados Paliativos - ECP e Equipe Gerontológica - EG). Os usuários e familiares foram identificados da mesma forma, com as siglas us para os usuários e fm para os familiares.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Relações nas equipes interdisciplinares e as possibilidades de integração profissional e articulação dos saberes e fazeres
Para os/as integrantes do estudo a atuação interdisciplinar coloca a necessidade de relações com base na comunicação autêntica, no respeito ao outro e ao seu conhecimento, no acolhimento das diferenças. Acrescentam, ainda, a necessidade das relações sustentarem-se na cooperação e na troca entre as disciplinas, na interação entre os profissionais, na articulação dos saberes e fazeres, na horizontalização das relações e na participação na tomada de decisões com base na construção de espaços para a elaboração e expressão de subjetividades.
Ao falar da interação, articulação e poder nas relações profissionais, os integrantes do estudo referem que as relações de trabalho são satisfatórias constituindo-se em um dos fatores que mais motivam a sua permanência nas equipes estudadas, especialmente quando comparadas às relações vivenciadas em outros espaços e equipes. Há nas equipes preocupação com o acolhimento dos/das profissionais que chegam para integrar o grupo, em valorizar a criatividade, bem como o respeito aos componentes das equipes.
Quando entrei eu me assustei porque nunca tinha visto um grupo assim. Isso é tudo muito bonitinho nos livros, em sala de aula. Mas logo que cheguei: nossa! Mesmo sem me conhecerem, eles já tinham ficado animados de ter um fisioterapeuta na equipe. Perguntaram se eu tinha gostado, passavam os pacientes. Isso não tinha acontecido em nenhum outro lugar (fs/ECP).
No entanto as relações profissionais modificam-se a cada momento, definindo a maior ou menor abertura para a interação entre os/as profissionais. Os problemas que surgem na realização do trabalho afetam as relações entre os/as integrantes das equipes e entre eles/as e os usuários e familiares.
Para os/as integrantes da equipe de cuidados paliativos as maiores dificuldades nas relações de trabalho são resultantes de conflitos profissionais, especialmente entre a área médica e de enfermagem. As relações entre essas categorias profissionais afetam significativamente as relações grupais e os/as profissionais das demais categorias sentem-se incomodados/as com estes problemas, pois interferem na equipe como um todo. Ainda assim para o grupo, há espaço para a conversação, para trabalhar as diferenças e é nestes espaços que os conflitos podem ser resolvidos.
O problema maior é dos médicos com a enfermagem. [...] desestrutura os outros. Derrubou uma pedrinha derruba todas. Eles envolvem todo mundo. Mexe com a equipe. (to/ECP).
Essa dificuldade das relações entre enfermagem e medicina não foram relatadas na equipe gerontológica.
Para os/as profissionais médicos/as e enfermeiros/as, o conflito entre as duas categorias tem relação direta com a dependência existente no processo de trabalho da medicina e da enfermagem. Da mesma forma como se colocam como os protagonistas dos maiores conflitos na equipe, estes/as profissionais percebem-se como os/as maiores parceiros/as no trabalho. Falando das razões que levam ao conflito entre as categorias, os/as integrantes do estudo relatam que estes são frutos de discordâncias sobre tratamentos e condutas assistenciais, principalmente. Para os/as profissionais da medicina, os/as enfermeiros/as permanecem mais tempo com os doentes e familiares, algumas vezes envolvem-se com problemas e situações pessoais e familiares e isso interfere no trabalho.
O nosso problema principal é com a enfermagem. Nós médicos [...] sabemos exatamente o que queremos. É só isso, cuidados paliativos. [A enfermagem] está tendendo muito para o assistencialismo. Falta solidez no conhecimento. Uma certeza de que você está fazendo aquilo por conhecimento técnico, [que] tem todo um arcabouço de teorias que te sustentam. Nós não somos uma instituição de caridade. Você está lidando com gente que sofre de uma doença que é traumatizante, é estigmatizante, potencialmente mortal, assustadora e tudo mais que quiser falar. Tem que ter o entendimento disso e atuar com especial carinho com essas pessoas, [...] mas carinho [...] como com qualquer pessoa que está doente. É uma coisa natural que as pessoas saibam senão ela nem deve atuar na área da saúde. Só que isso acaba sendo o que predomina. Acaba se envolvendo demais com o paciente, entrando demais na malha das relações deles [...] com coisas que não tem nada a ver com o ambiente do hospital (m2/ECP).
Para os/as profissionais enfermeiros/as os conflitos existentes entre a categoria médica e a enfermagem têm raízes culturais e históricas, acontecem muito em função da formação profissional diferenciada e do peso dado historicamente às condutas médicas na assistência ao doente. Destaca-se também o corporativismo destas categorias no trabalho em saúde e a defesa que cada uma faz de suas posições e profissões.
Muito. Até por causa da história. E muito mais até com o médico e a enfermeira. Não que a gente não tenha conhecimento como o médico. Temos. A gente tem toda uma formação acadêmica muito boa. Mas só que culturalmente ele é o doutor. Existem umas animosidades. Com todo mundo, como qualquer outra profissão. Todo relacionamento tem que ter umas animosidades de vez em quanto, até para dar umas sacudidas. Dependendo dos interesses particulares de cada um é bem difícil. Nós temos interesse de que sempre a enfermagem se dê bem. Vamos defender o nosso grupo. E a equipe médica também [faz o mesmo] (e3/ECP).
A atuação em equipe, para se dizer interdisciplinar precisa aproximar-se da prática do trabalho desenvolvido em uma "equipe integração"no qual se produziriam relações com base na interação dos agentes e na articulação dos saberes e fazeres. Interação é entendida como uma prática comunicativa que se caracteriza pela busca de consensos entre os/as envolvidos/as no processo de trabalho em saúde, de modo que estes/as possam argumentar, reciprocamente, em relação ao trabalho cotidianamente executado e construir um projeto comum. A articulação representaria as conexões entre os diferentes saberes e fazeres envolvidos no cuidado à saúde, conexões que se dão de modo ativo e consciente, sendo evidenciadas pelo agir dos/das profissionais(8).
A articulação e a interação dependem do modo de produção do trabalho em saúde, de como os/as trabalhadores/as gerenciam e aplicam os conhecimentos e técnicas próprias de cada profissão na produção das atividades necessárias à atenção em saúde, de como se estabelece o encontro entre os/as profissionais e destes/as com os usuários, dos consensos e conexões produzidas neste encontro.
A articulação e a interação na equipe interdisciplinar acontecem considerando a assimetria das relações sejam elas entre os/as trabalhadores/as ou entre trabalhador/a e usuário. No âmbito profissional estão envolvidos conhecimentos e práticas distintas, reconhecidas e valorizadas diferentemente no conjunto do trabalho em saúde. Nesta perspectiva ouvir o/a outro/a, considerar cada contribuição na definição do trabalho a ser realizado é parte da constituição de um trabalho de natureza interdisciplinar.
Acolhimento, vínculo e ampliação de acesso: características das relações profissionais/usuários nas práticas interdisciplinares
No que se refere às relações entre profissionais/usuários e familiares, a atuação interdisciplinar propicia um outro modo de relacionar-se com o usuário/familiar, estimulando a percepção e a atenção às suas necessidades, além daquelas relacionadas à doença ou ao motivo que os levou a buscar os serviços de saúde.
Os usuários dos serviços prestados pelas equipes estudadas destacam o melhor atendimento às suas necessidades e o recebimento de uma atenção mais humanizada. Neste processo mencionam a proximidade que conseguem estabelecer com algumas categorias profissionais, a confiança que depositam no serviço e nos/as profissionais e a atuação diferenciada dos/as profissionais, pela comunicação e informações que são prestadas.
Os outros lugares... [...] Eu usei só especialidade, porque lá é assim, você precisa operar o tórax tu vais pro tórax; pulmão, tu vais para o pulmão. Não tem envolvimento da oncologia nos outros hospitais. [Aqui] o dia-a-dia deles é uma preparação, enquanto que nos outros hospitais você é mais uma. Eles não têm preparo. A única coisa que você percebe é que quando sabem que você é uma paciente oncológica eles te olham como um condenado a morte já. [Os profissionais] não têm informações mais modernas sobre o que está acontecendo na área da oncologia. Então você causa um pouco de lástima. Mas também depende, porque se for um lugar como o Hospital X que é muito grande... Eu fiquei 10 dias, mas vou te contar, foram 10 dias de terror. Lá eles já estão no piloto automático. Tanto faz! Lá eu não senti nenhuma sensibilização em relação ao tipo da doença. Que mais eu posso dizer. Sinceramente até as mulheres da limpeza são agradáveis, dá para pedir as coisas (us1/ECP).
Na fala dos/as integrantes das equipes interdisciplinares o vínculo é percebido pela confiança depositada pelos usuários nos profissionais, na equipe e na atenção recebida, destacando-se o processo de acolhimento e de escuta de suas necessidades.
É a confiança deles. Eles confiam. Gostam do trabalho que a gente faz. E eu acho que a gente faz um bom trabalho. Não vou dizer pra ti que é o melhor trabalho do mundo, mas fazemos um trabalho legal. [...] Conseguimos passar essa segurança, essa confiança. Eles se sentem seguros de ter o doente em casa porque a gente dá uma boa retaguarda (te1/ECP).
Na relação dos/as profissionais com os usuários destaca-se, ainda, a preocupação com o acolhimento do usuário e de suas necessidades, com a resolução dos problemas que levaram esta pessoa a buscar o serviço de saúde, com a garantia do acesso ao serviço, quando necessário. Os/as profissionais apontam que os usuários dos serviços oferecidos pelas equipes interdisciplinares são melhor acolhidos do que em outros serviços de saúde que utilizam o modelo tradicional de organização do trabalho. Nas equipes interdisciplinares os usuários dispõem de acesso aos profissionais, a assistência é mais resolutiva e eles se sentem mais amparados em suas necessidades.
Eles ligam e a gente encaixa. No paliativo sempre que chega [o doente] a gente, o médico que está presente dá uma olhada. [...]. Coitados. No final de semana, às vezes eles preferem não ficar bem em casa a ir para uma emergência. Se a gente puder facilitar, facilita (te1/ECP).
A forma como ele chega ao hospital. O fato de não estarem naqueles corredores ali, de ter uma salinha de espera, ter alguém ali que escute o que eles estão dizendo, poder chegar, tentar encaixar quando dá, por mais que às vezes não se consiga. [...] É diferente o tratamento deles (ps/EG).
Os relatos de usuários e de familiares falam também do modo como o serviço funciona e o suporte que oferece aos familiares e doentes. No serviço de cuidados paliativos, o contato via telefone quando de alguma intercorrência, a possibilidade de contato entre profissionais de outras instituições e os/as profissionais da equipe facilitam o encaminhamento e a solução dos problemas mais rapidamente, evitando o sofrimento do/a doente e o desgaste dos/as familiares.
Se você procura o profissional errado eles te encaminham pro profissional certo. Quando ela saiu daqui, o Doutor deu o telefone do hospital e o dele particular. Pra não incomodar a gente ligou para o hospital e ele estava lá. Nós conversamos por telefone, ele já conhecia o caso. Deixou a internação pronta para quando a gente chegasse.É mais seguro. Essa foi a informação que a gente levou. Se ela sentisse alguma coisa [em sua cidade de origem] era para ir pro hospital e pedir para os profissionais entrarem em contato com eles aqui. Dá uma tranqüilidade, eu acho que eles estão super certos. Se eu for pegar um profissional lá [na cidade], ele vai ter que estudar todo o caso de novo. Ele vai perder tempo e ela vai sofrer (fm1/ECP).
A atuação em equipe interdisciplinar proporciona um outro entendimento sobre o usuário e sobre a sua vida, distanciando-se da visão focada na doença e aproximando-se da visão dos mesmos como seres humanos com suas individualidades e relações familiares e sociais.
Eu particularmente, acho que esse paciente deve ficar em casa. Eu fico agoniada quando eles ficam no hospital. Não é justo pelo tempo curto de vida que eles têm. Talvez eles nem consigam enxergar isso, mas é a família quem dá maior apoio a eles, a gente não pode achar que é mais importante que a família, que o meio ambiente, que o ser social que eles são. A gente não pode afastar esse paciente, geralmente o tempo é muito curto, eles perdem isso quando estão hospitalizados. Por mais flexível que a gente seja, por mais que veja esse paciente como um todo, nunca ele vai ser visto como em sua casa. Lá ele é uma pessoa especial. Aqui pra nós ele é um paciente. A gente tem muito carinho de ver esse paciente em casa. Infelizmente a gente só tem uma equipe [para atender] em casa, isso restringe bastante a nossa atuação, até pela situação de recursos humanos no serviço público (m1/ECP).
No serviço de gerontologia a possibilidade de recorrer ao ambulatório mesmo quando não possuem consultas agendadas facilita a situação do usuário quando este necessita de receitas médicas e outras orientações evitando a interrupção do tratamento. Em todas as situações, mesmo quando profissionais não resolvem a situação de imediato, os usuários sentem-se acolhidos em suas necessidades, porque são recebidos, são ouvidos e orientados.
[Outro dia] eu vim fazer consulta e não tinha vaga para a Doutora. Daí eu disse que precisava de uma consulta para pegar remédio [porque] não tinha receita. Num instantinho a [enfermeira] já tinha a receita. Eu pego remédio lá no postinho, tem que ter a receita, então tudo isso é uma facilidade pra gente. E elas são muito atenciosas, dão explicação (us3/EG).
A falta de atenção dos/as profissionais de saúde no momento do atendimento e da prestação de cuidados, tem sido uma queixa de muitos usuários dos serviços de saúde(4,7). Pesa negativamente na relação usuário/profissional a impessoalidade, e as relações superficiais que os/as trabalhadores/as têm mantido com a pessoa que busca estes serviços. A atenção das equipes e a disponibilidade para conversarem, ouvirem as situações que envolvem a vida e a doença e as dificuldades familiares, são consideradas como fator positivo no atendimento que recebem.
Comunicação profissional/usuário nas equipes interdisciplinares: um espaço de exercício da autonomia
Para usuários e familiares do serviço de cuidados paliativos um aspecto positivo da relação que estabelecem com os/as profissionais diz respeito à comunicação. Neste sentido sentem-se esclarecidos sobre a doença, os resultados de tratamentos, as expectativas de evolução da doença. O esclarecimento sobre a doença facilita a aceitação do processo e prepara tanto o doente como os familiares para o desfecho final da doença.
Na prática diária, observa-se nas enfermarias que doentes e familiares questionam durante a visita multiprofissional a evolução da doença, os tratamentos propostos e que os/as profissionais mostram-se disponíveis e tentam de modo adequado responder aos questionamentos. Neste sentido, desde os esclarecimentos acerca de diagnóstico, prognóstico, tratamentos propostos, procedimentos são discutidos com doente e familiares na visita da equipe. Os esclarecimentos são prestados no momento em que são solicitados e a profundidade das informações dependem de fatores como conhecimento do diagnóstico, do modo como o doente e/ou familiar expõe sua vontade de saber.
A comunicação da doença aos familiares e ao próprio doente é uma prática estimulada no serviço. No entendimento dos/as profissionais o doente é soberano sobre as decisões que envolvem sua vida e doença e devem ser comunicados e consultados sobre os rumos do tratamento.
Comunicação, ainda, culturalmente nós temos umas dificuldades. Muitos pacientes, muitas famílias não querem saber claramente sobre a doença, não querem conversar sobre prognóstico, morte e sofrimento. A grande maioria das conversas acaba sendo indireta. Na maioria dos locais que eu conheço não existe essa interação tão grande dos familiares com a equipe. Às vezes nem com o médico. O médico só aparece pra falar com o paciente e nem espera. Nem quer falar com a família, o que é um erro [...] (m3/ECP).
No entanto, nem sempre esta prática é tranqüila para os/as profissionais e para os doentes e familiares. Muitas vezes o doente tem dificuldade de aceitar a evolução da doença e a comunicação entre o/a profissional e o doente tem que considerar estas limitações.
Em relação aos familiares existe em nossa cultura a tendência a querer negar ao doente o diagnóstico, e neste sentido a prática dos/as profissionais de tentar, na medida das possibilidades, trabalharem as situações com clareza, mesmo com o doente, nem sempre é aceita. Nestes casos a equipe utiliza-se das reuniões de família, tenta ajustar as situações, na medida das possibilidades e da capacidade da família lidar com a situação. Ainda assim, na prática diária, as intervenções são discutidas com o doente e a ele/a é dada a possibilidade de escolha quando o/a mesmo/a tem condições para fazê-la. Mesmo predominando essa orientação no serviço, nas situações em que o familiar sente que seu poder de decisão não é respeitado pelos/as profissionais surge o conflito.
Ainda que a equipe busque uma direção assertiva nas relações profissionais/doentes/familiares as situações de doenças graves e prolongadas, com possibilidade de morte, provocam divergências e conflitos dos familiares entre si. Mobilizam sentimentos conflitantes que vão do medo da perda, da culpa por acharem que não estão cuidando adequadamente do doente ou que não estiveram atentos aos sinais da doença, e por isso buscaram ajuda tarde demais, o receio das reações do doente se souber a realidade dos fatos, dentre muitos outros. A necessidade de participação nas decisões quanto ao tratamento muitas vezes é decorrente destes fatores que precisam ser compreendidos e trabalhados pelos profissionais, abrindo espaço para a expressão destes sentimentos(9).
Do mesmo modo, os/as profissionais devem atentar para as situações em que a família deseja negar ao doente a gravidade de sua condição. De alguma forma o doente sabe de sua condição, percebe a proximidade do fim, mesmo quando lhe é negada a verdade. Muitas vezes opta por conservar-se calado para proteger a família, evitar a dor daqueles que lhes são caros, porém a negação dos fatos pode provocar um distanciamento da família, um isolamento do doente que não pode expor seus sentimentos diante do sofrimento e da proximidade da morte. A equipe de saúde nesta situação deve propiciar espaço para que o doente exponha suas perdas, seus sentimentos em relação à doença, permitindo-lhe exercer o grau de autonomia que ainda lhe é possível(9,10).
O conjunto de aspectos que caracterizam as relações profissionais nas equipes estudadas, bem como as relações entre profissionais e usuários aproxima-se do que tem sido destacado nos debates recentes acerca da construção do Sistema Único de Saúde com vistas a sua efetivação na realidade brasileira. Muitos trabalhos vêm sendo produzidos destacando a importância de aspectos como a humanização da assistência, a integralidade em saúde, a produção de sujeitos no processo de atenção à saúde, a necessidade de formação de vínculos entre os profissionais e entre os profissionais e os usuários, o acolhimento, a necessidade de ampliação do acesso das pessoas aos serviços de saúde(3,11-13).
Embora os estudos, algumas vezes, centralizem a discussão em um ou outro destes aspectos entende-se que é a aproximação com o conjunto destes fatores que caracteriza o Sistema Único de Saúde, segundo os princípios defendidos a partir movimento da reforma sanitária brasileira. Não há humanização sem vínculo, sem garantia de acesso, sem acolhimento aos usuários, sem participação de trabalhadores/as e usuários na definição dos serviços necessários e na forma de utilização dos recursos disponíveis(12).
Sobre estes aspectos a atuação em equipes interdisciplinares parece contribuir para a construção dos princípios e diretrizes favoráveis a construção do SUS. A atuação interdisciplinar possibilita modos solidários dos trabalhadores relacionarem-se entre si e com os usuários, contribuindo para a efetivação de novas formas de organização do trabalho (NFOT) em saúde.
Embora o processo de mudança do sistema de saúde dependa também, e principalmente, de mudanças e decisões que envolvem as esferas mais amplas da sociedade, não é possível desconsiderar que muitas destas mudanças podem acontecer a partir da prática, nos locais em que as pessoas vivem e trabalham.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Na atuação das equipes interdisciplinares estudadas confirma-se o potencial para a realização de mudanças que beneficiam os usuários e os/as trabalhadores/as, bem como reorganização no modo de fazer assistência à saúde, a partir dos micro espaços de trabalho. O trabalho nas equipes interdisciplinares estudadas conjuga vários destes fatores: vínculo, acolhimento, humanização da assistência e melhora no acesso dos usuários aos profissionais e aos serviços de saúde. Possibilitam também uma maior participação do usuário nas decisões que envolvem sua vida e o processo saúde-doença favorecendo deste modo a criação de condições para que os usuários se coloquem como sujeitos e exerçam sua autonomia.
Relativamente à construção de vínculos profissional/usuário, na maioria das vezes as equipes estudadas desenvolvem uma noção de forte responsabilidade para com os usuários e famílias, demonstrando preocupação e envolvimento que ultrapassam o tratamento da doença. Neste sentido, questões que na prática tradicional do cuidar, predominante nos serviços de saúde, não se constituem em preocupação dos/as profissionais como, por exemplo, transporte, alimentação adequada à condição física do doente, intervalos entre consultas de modo a não paralisar o tratamento por falta de receitas médica, e outros, passam a fazer parte do repertório profissional em uma abordagem focada no usuário enquanto sujeito social. Essa abordagem consegue cuidar dos indivíduos aproximando-se o olhar para a sua multidimensionalidade enquanto ser individual, cultural, histórico e social, além de utilizar melhor os recursos existentes nas instituições e na comunidade.
As relações construídas nestas experiências possibilitam, portanto, que problemas e conflitos usuais na organização e prestação da assistência sejam minimizados ou até superados. E isso se traduz em satisfação para ambos os envolvidos, profissionais e usuários.
REFERÊNCIAS
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Correspondência:
Denise Elvira Pires de Pires
Universidade Federal de Santa Catarina
Centro de Ciências da Saúde, Departamento de Enfermagem Programa de Pós Graduação Em Enfermagem
Trindade. CEP
88040-970. Florianopolis, SC
Submissão: 19/05/2008 Aprovação: 26/10/2009
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